Monoteísmo Primitivo - Um debate sobre sua origem
Por L. Norman Geisler
Tradução: Elvis Brassaroto Aleixo
A Bíblia ensina que o monoteísmo1 foi a concepção mais
remota de Deus. O primeiro versículo do livro de Gênesis
é monoteísta: “No princípio criou Deus os céus e a
terra” (Gn 1.1). Todos o patriarcas, Abraão, Isaque e
Jacó, apresentaram uma fé monoteísta. (Gn 12-50). Isto
revela um Deus que criou o mundo e que, portanto, é
diferente do mundo. Esses são os conceitos essenciais do
teísmo ou monoteísmo.
Igualmente, bem antes de Moisés, José acreditou
declaradamente em um monoteísmo moral. Sua recusa em
cometer adultério é justificada pelo seu conhecimento de
que seria um pecado contra Deus. Enquanto estava
resistindo à tentação da esposa de Potifar, ele
declarou: “Como, pois, posso cometer este tão grande
mal, e pecar contra Deus?” (Gn 39.9).
Jó, outro livro bíblico contextualizado em um período
remoto da antiguidade, revela claramente uma visão
monoteísta de Deus. Existem grandes evidências de que o
livro de Jó desenvolveu-se em tempos patriarcais
pré-mosaicos. O livro vislumbra um Deus todo-poderoso (Jó
5.17; 6.14; 8.3), um Deus pessoal (Jó 1.7-8) que criou o
mundo (Jó 38.4) e é soberano sobre sua criação (Jó
42.1-2).
Encontramos na epístola de Paulo aos Romanos, no seu
primeiro capítulo, a afirmação de que o monoteísmo
precedeu o animismo2 e o politeísmo3. O texto declara:
“Porquanto o que de Deus se pode conhecer, neles se
manifesta, porque Deus lhes manifestou. Porque as suas
coisas invisíveis, desde a criação do mundo, tanto o seu
eterno poder, como a sua divindade, se entendem, e
claramente se vêem pelas coisas que estão criadas, para
que eles fiquem inescusáveis; porquanto tendo conhecido
a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram
graças, antes em seus discursos se desvaneceram, e o seu
coração insensato se obscureceu. Dizendo-se sábios,
tornaram-se loucos, e mudaram a glória do Deus
incorruptível em semelhança da imagem de homem
corruptível, e de aves, e de quadrúpedes, e de répteis.
Por isso também Deus os entregou às concupiscências de
seus corações, à imundícia, para desonrarem seus corpos
entre si; pois mudaram a verdade de Deus em mentira, e
honraram e serviram mais a criatura do que o Criador,
que é bendito eternamente. Amém” (Rm 1.19-25).
A tese de James Frazer sobre o monoteísmo recente
A tese de um monoteísmo recente foi divulgada por W.
Schmidt na sua obra High Gods in North América4. Mas é a
obra de James Frazer, The Golden Bough5, que tem
alcançado proeminência sobre o assunto. Sua tese não se
baseia em uma confiável procura histórica e cronológica
para as origens do monoteísmo, antes, advoga que as
religiões evoluíram do animismo para o politeísmo, e
deste para o henoteísmo6 e, finalmente, chegando ao
monoteísmo. Apesar de seu uso seletivo e anedótico de
fontes antiquadas, as idéias do livro ainda são
acreditadas amplamente. A resistência à tese de Frazer
de que a concepção monoteísta de Deus evoluiu
recentemente não tem fundamento por muitas razões:
Argumentos para a crença do monoteísmo primitivo
Há muitos argumentos a favor do monoteísmo primitivo. E
muitos desses argumentos vêm dos registros e tradições
que temos das civilizações antigas, que incluem os
livros de Gênesis e Jó e o estudo das tribos
pré-alfabetizadas.
A historicidade de Gênesis
Não há nenhuma dúvida de que Gênesis apresenta uma
concepção monoteísta de Deus. De igual modo, é claro,
esse livro é o instrumento mais confiável que dispomos
de um registro histórico da raça humana, desde os
primeiros seres humanos. Conseqüentemente, os argumentos
que atestem a historicidade dos primeiros capítulos de
Gênesis favorecerão o monoteísmo primitivo.
O notável arqueólogo William F. Albright demonstrou que
o registro patriarcal de Gênesis (Gn 12-50) é histórico.
Ele declara: “graças à pesquisa moderna, reconhecemos
agora sua significativa historicidade [da Bíblia]. As
narrativas dos patriarcas, Moisés e o êxodo, a conquista
de Canaã, os juízes, a monarquia, o exílio e a
restauração de Israel, tudo tem sido confirmado e
evidenciado em uma extensão que eu julgava impossível há
quarenta anos”.7 E acrescenta: “não há um único
historiador bíblico que não tenha se impressionado pela
acumulação rápida de dados que apóiam a historicidade
significativa da tradição patriarcal”.8
Entretanto, o livro de Gênesis é uma unidade literária e
genealógica, tendo constituído listas de descendentes
familiares (Gn 5,10) acompanhadas da relevante frase
literária “esta é a história de” ou “estas são as
origens dos” (Gn 2.4). A frase é usada largamente em
outros trechos do livro de Gênesis (2.4; 5.1; 6.9; 10.1;
11.10,27; 25.12,19; 36.1,9; 37.2).
Além disso, a importante narrativa sobre a torre de
Babel, capítulo 11, é referida por Jesus e pelos
escritores do Novo Testamento como histórica. Também são
citados por Cristo e pelos escritores do Novo
Testamento: Adão e Eva (Mt 19.4,5), a tentação que
sofreram (1Tm 2.14), sua posterior queda (Rm 5.12), o
sacrifício de Caim e Abel (Hb 11.4), o assassinato de
Abel por Caim (1Jo 3.12), o nascimento de Sete (Lc
3.38), a trasladação de Enoque (Hb 11.5), a menção do
matrimônio antes dos tempos do dilúvio (Lc 17.27), a
inundação e destruição do homem (Mt 24.39), a
preservação de Noé e sua família (2Pe 2.5), a genealogia
de Sem (Lc 3.35,36) e o nascimento de Abraão (Lc 3.34).
Assim, a pessoa que questionar a historicidade de
Gênesis, conseqüentemente terá de questionar também a
autoridade das palavras de Cristo e de muitos outros
escritores bíblicos que recorreram ao livro de Gênesis.
Em particular, existem fortes evidências para a
historicidade dos registros bíblicos sobre Adão e Eva.
Esses registros revelam que os pais da raça humana foram
monoteístas desde o princípio (veja Gn 1.1,27; 2.16,17;
4.26; 5.1,2).
1) Gênesis 1-2 os apresenta como pessoas literais e
narra os eventos importantes de suas vidas (entenda-se:
de suas histórias, registros).
2) Eles geraram crianças reais, e não fictícias (Gn
4.1,25; 5.1).
3) A mesma frase, “estas são as gerações de”, empregada
para registrar histórias posteriores (Gn 6.9; 9.12;
10.1,32; 11.10,27; 17.7,9), é usada também no relato da
criação (Gn 2.4) e na formação de Adão e Eva e seus
descendentes (Gn 5.1).
4) As cronologias posteriores do Velho Testamento
posicionam Adão no topo da lista genealógica (1Cr 1.1).
5) O Novo Testamento cita Adão como o primeiro
antepassado literal de Jesus (Lc 3.38).
6) Jesus recorreu à historicidade de Adão e Eva, o
primeiro casal “macho e fêmea”, constituindo, como base
para a união física, o primeiro matrimônio (Mt 19.4).
7) O livro de Romanos declara que a morte literal foi
trazida ao mundo por um “Adão” literal (Rm 5.14).
8) A comparação de Adão (“o primeiro Adão”) com Cristo
(“o último Adão”), em 1 Coríntios 15.45, atrela a
historicidade de Adão com a de Jesus, e autentica
explicitamente a compreensão histórica de Adão como uma
pessoa literal.
9) A declaração do apóstolo Paulo, de que “primeiro foi
formado Adão, depois Eva” (1Tm 2.13,14), revela que ele
fala de uma pessoa real.
10) Logicamente, houve entre eles o primeiro
relacionamento conjugal, “macho e fêmea”, do contrário,
a raça humana não teria continuidade. A Bíblia chama
este casal de “Adão e Eva”, e não há quaisquer razões
para duvidar da existência real deles. E aqueles que
argumentam a favor de sua historicidade conseqüentemente
apóiam a posição bíblica de um monoteísmo primitivo.
A evidência do livro de Jó
Semelhante a Gênesis, Jó é possivelmente um dos livros
mais antigos do Velho Testamento. Ao menos há um
consenso entre os estudiosos de que sua história
originou-se em tempos patriarcais, sendo, portanto,
pré-mosaica. De igual modo, o livro de Jó também
confirma o monoteísmo e a pessoalidade de Deus. Revela
um Deus pessoal (1.6,21), moral (1.1; 8.3,4), soberano
(42.1,2), Todo-Poderoso (5.17; 6.14; 8.3; 13.3 etc) e
Criador (4.17; 9.8,9; 26.7; 38.6,7). O posicionamento da
história de Jó como primitiva possui vários fundamentos.
1) Sua organização familiar em clãs, adotada no período
pré-mosaico e abolida posteriormente entre os hebreus.
2) A ausência total de qualquer referência à lei de
Moisés.
3) O emprego patriarcal peculiar para o nome de Deus:
Todo-Poderoso (5.17; 6.4; 8.3 cf. Gn 17.1; 28.3 etc).
4) A comparativa raridade com que é empregado o nome
SENHOR (Yahweh) (cf. Êx 6.3).
5) O oferecimento de sacrifícios pelo chefe da família
em oposição ao sacerdócio levítico.
6) A menção da cunhagem primitiva de moedas, implícita
na expressão “peças de dinheiro” (42.11 cf. Gn 33.19).
7) O uso da expressão “os filhos de Deus” (1.6; 2.1;
38.7), encontrada apenas em Gênesis 6.2-4.
8) A longevidade de Jó, que viveu 140 anos depois que
sua família foi restabelecida (42.16), ajusta-se ao
período patriarcal.
Jó fala de um Deus que criou o mundo (Jó 38.4), que é
soberano sobre todas as coisas (42.2), inclusive sobre
Satanás (1.1,6,21 etc). Todas essas coisas são
características de uma concepção monoteísta de Deus.
Assim, os tempos primitivos de Jó revelam que o
monoteísmo não teve um desenvolvimento recente.
As religiões primitivas são monoteístas
Ao contrário da convicção popular, as religiões
primitivas da África revelam por unanimidade um
explícito monoteísmo. Uma das maiores autoridades em
religiões africanas, John S. Mbiti que, em sua carreira,
já pesquisou mais de 300 religiões tradicionais,
declarou: “Em todas estas sociedades, sem uma única
exceção, as pessoas têm uma noção de Deus como o Ser
Supremo”.9 Isto é uma verdade compartilhada por outras
religiões primitivas, muitas das quais crêem em um Deus
Altíssimo ou em um Deus celestial, assinando mais uma
vez o monoteísmo primitivo.
A influência de evolução
A idéia de que o monoteísmo evoluiu recentemente ganhou
popularidade após a teoria da evolução biológica de
Charles Darwin, em sua obra A origem das espécies, de
1859. Em outra de suas obras, Darwin escreveu: “Não há
nenhuma evidência de que o homem tenha originalmente
adotado a crença na existência de um Deus onipotente”.
Pelo contrário, Darwin acreditava que “as faculdades
mentais humanas [...] conduziram o homem à crença em
entidades espirituais e, desta, para o fetichismo10, o
politeísmo e, por fim, o monoteísmo...”.11
A tese evolutiva de Frazer sobre a religião está baseada
em várias suposições sem provas.
Primeiro: seu apoio na evolução biológica mostra, na
realidade, sua ausência de fundamentos sérios. A teoria
da evolução já foi satisfatoriamente contestada por
autoridades cientificas.12
Segundo: ainda que considerássemos a evolução biológica
como uma verdade científica, não há nenhuma razão para
acreditar que tal evolução tenha sido considerada no
âmbito religioso. É um engano de categoria metodológica
classificar que o que é verdade em uma disciplina seja
também verdade em outra.
O darwinismo social é outro caso em questão. Poucos
darwinistas concordariam com Hitler em sua obra Mein
Kampf , que diz que deveríamos destruir as raças
inferiores, já que a evolução tem feito isto durante
séculos! Ele escreveu: “Se a natureza não deseja que os
indivíduos mais fracos devam se unir (misturar) com o
mais forte, ela deseja menos ainda que uma raça superior
venha se misturar com uma inferior; até mesmo porque, em
tal caso, todos os seus esforços, ao longo de centenas
de milhares de anos, para estabelecer uma fase evolutiva
mais alta, pode ser resultado em futilidade”.13
Assim, se muitos darwinistas concordam que a evolução
não deve ser aplicada ao desenvolvimento social humano,
então não há nenhuma razão para aplicá-la à religião.
Dessa forma, nem a suposta prova científica de Darwin
serve como base para a evolução do monoteísmo recente.
A melhor explicação
As origens do politeísmo podem ser explicadas como uma
degeneração do monoteísmo original, como vimos na
declaração anterior de Romanos 1.19. Quer dizer, o
paganismo originou-se do monoteísmo primitivo, e não o
contrário. Isso é evidenciado no fato de que a maioria
das religiões pré-alfabetizadas possuía uma visão
monoteísta de Deus. William F. Albright reconhece,
igualmente, que os respectivos deuses dessas religiões
“eram considerados todo-poderosos e cridos como
criadores do mundo; eram, geralmente, deidades cósmicas
e seus adeptos, freqüentemente, acreditavam que tais
deuses residiam no céu”.14
Essa concepção é claramente contra as concepções
politeístas e animistas de deidade.
Não há nenhuma razão concreta para negar o monoteísmo
primitivo apresentado pela Bíblia. Pelo contrário, há
toda evidência para acreditar que o monoteísmo foi a
primeira concepção religiosa que algumas religiões
deturparam. De fato, essa é a posição que melhor se
ajusta à forte evidência de que o monoteísmo revelado na
Bíblia foi distorcido pelas tendências humanas.15
Em resumo, a concepção correta de Deus, o monoteísmo
primitivo, foi resgatada, e não evoluída durante
séculos. Deus fez o Homem conforme a sua imagem, mas os
homens corromperam esta verdade (Rm 1.23).
Notas:
1 Monoteísmo: crença na existência de um único Deus.
2 Animismo: idéia de que todas as coisas no universo são
investidas de uma força de vida, alma ou mente. Um
animismo filosófico, por exemplo, considera que uma
pedra ou uma árvore não é meramente um aglomerado de
átomos e moléculas, mas, pelo contrário, possui um a
“conscientização” das forças ou dos outros corpos que
estão ao redor.
3 Politeísmo: crença na existência de vários deuses.
4 High Gods in North of América. W. Schmidt. Oxford:
Claredon Press, 1933.
5 The Golden Bough. James G. Frazer. London: Mcmillan,
1890.
6 Henoteísmo ou Enoteísmo: deriva seu nome dos termos
gregos henos, um, e theos, deus. A idéia é que só existe
um único Deus. Mas, no uso comum que se faz da palavra,
a idéia transmitida é que existe uma divindade suprema,
que tem contato com um certo mundo ou um certo grupo de
seres, ao mesmo tempo em que podem existir outros deuses
com outros campos de atividade. Pelo menos em algumas
culturas, como na dos hebreus, o henoteísmo pode ser um
passo intermediário entre o politeísmo e o monoteísmo.
7 From Stone Age to Christianity. Willian F. Albright.
Garden City, NY: Doubleday, 1957, p. 1329.
8 The Biblical Period. Willian F. Albright. New York:
Harper, 1955.
9 African Religions and Philosophy. John S. Mbiti. New
York: Praeger Publishers, 1969.
10 Fetichismo: crença mantida particularmente nas
religiões da África ocidental de que os espíritos são
capazes de possuir objetos. Existe também a crença de
que certos objetos ou “talismãs” podem afastar os
espíritos maus.
11 The Descent of Man and selection in relation to Sex.
Charles Darwin. New York: Appleton and Company, 1896, p.
302,303.
12 Evolution: a Theory in Crisis. Bethesda, MD: Adler
and Adler, 1985.
13 Mein Kampft. Adolph Hitler. London: Grust and
Blackett Ltds, Publishers, 1939, p. 239-242.
14 From Stone Age to Christianity. Willian F. Albright.
Garden City, NY: Doubleday, 1957, p. 170.
15 The Kalam Cosmological Argument. Willian Lane Craig.
London: The McMillan Press, 1979.
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