A letra mata?
A marginalização do estudo teológico
Por Elvis Brassaroto Aleixo
Deus existe? Quem é Deus? Onde Deus está? Para onde vou
após a morte? Existe céu? Existe inferno? Devo crer na
Bíblia como Palavra de Deus?
Todos os cristãos que algum dia já se detiveram na
reflexão destas simples, mas inquietantes interrogações,
experimentaram, ainda que inconscientemente, momentos de
meditações teológicas, pois a teologia é uma matéria
importante e inerente a todos os crentes que, de forma
inevitável, contemplam os mistérios da vida e as
revelações divinas.
Neste sentido estrito, podemos afirmar que todos os
membros das nossas igrejas são teólogos, mesmo que
ignorem ou até abdiquem desta condição. Se mergulharmos
ainda um pouco mais no assunto, e num sentido mais amplo
que o acima mencionado, poderíamos dizer que todo
indivíduo de bom senso, que possua um conceito
formalizado acerca de um ser divino superior,
independente de seu credo, é um teólogo. Cada religião
possui a sua “teologia”.
Definindo o termo
Mas, afinal, o que é teologia cristã?
Na perspectiva da teologia acadêmica e histórica, uma
resposta objetiva e clássica seria: “fé em busca de
entendimento”. Orientados por este significado,
perceberemos que o genuíno desígnio da teologia
acadêmica não deve ser o exame da Bíblia, de forma
indiscriminada e leviana, para construir doutrinas que
justifiquem uma crença. Muito pelo contrário, o teólogo
cristão deve utilizar a teologia para compreender melhor
aquilo que previamente expressa o texto bíblico, a
despeito das suas crenças.
Os assassinos da letra
Não obstante a todas estas ponderações, não é difícil
encontrar opositores do estudo teológico entre os mais
diversos grupos religiosos. Em verdade, esse
comportamento é peculiar em muitos deles. Entretanto e
lastimavelmente, isso é constatado também no seio da
igreja evangélica.
Geralmente, o texto áureo e justificativo desse
posicionamento encontra-se nas conhecidas palavras do
apóstolo Paulo, que dizem: “O qual nos fez também
capazes de ser ministros de um novo testamento, não da
letra, mas do espírito; porque a letra mata e o espírito
vivifica” (2Co 3.6; grifo do autor). Eis aí a questão
que lança os fundamentos para a hostilidade de alguns em
relação ao estudo teológico.
Pois bem, se o apóstolo Paulo declara que a letra mata,
então este fato é conclusivo. O que alguns precisam
descobrir é quem de fato é essa “assassina”.
O que nos move a ressaltar este ponto é o fato de que
essa “tal letra”, mencionada pelo apóstolo, tem sido
alvo de distorções, prejudicando o desenvolvimento do
ensino na igreja. É verdade que essa objeção ao estudo
teológico é defendida por cristãos sinceros, mas que
deliberaram marginalizar o estudo teológico acreditando
ser uma atitude louvada pela Bíblia.
É curioso e contraditório, ao mesmo tempo. Mas o fato é
que essa tal “letra que mata” vem tendo seu verdadeiro
sentido também assassinado por alguns que a tentam
interpretar. São aqueles a quem podemos chamar de “os
assassinos da letra”. Se você, porventura, se identifica
como um dos tais, por favor, não se ofenda! A verdade é
que essa repulsa tem no mínimo duas razões para existir.
Proponho refletir um pouco mais sobre estas duas
questões e depois retornamos ao “homicídio espiritual
causado pela letra”, o qual supostamente Paulo teria
apregoado.
A marginalização da teologia
Quais seriam os fatores que cultivam esta
marginalização?
Antes de qualquer palavra, é fundamental esclarecer que
não é nossa finalidade aqui censurar a devoção autêntica
de nossos irmãos. A sinceridade de sua fé não está em
discussão. Até porque, um dos fatores que mais ajudam a
alimentar a rejeição da teologia encontra raízes nos
próprios teólogos.
Conversando com uma missionária, algum tempo atrás, fui
interpelado com uma questão que, de certa forma, reflete
o julgamento de muitos membros de igrejas em relação à
teologia. Ela questionava por que os teólogos são tão
apáticos em sua piedade e testemunho cristão. Não quero
aqui entrar em méritos, como, por exemplo, discutir essa
generalização injusta ou o que está escondido atrás do
conceito de apatia. Todavia, e inegavelmente, não se
exige muitos esforços para identificar comportamentos
teológicos que instigam a rejeição da teologia. Esse
estereótipo pejorativo parece ser preservado por alguns
poucos teólogos, mas acabam por macular toda a classe. O
orgulho intelectual, a racionalização vazia, as
conjeturas e especulações são tidos como alguns frutos
nocivos da teologia. E se torna mais grave ainda quando
tais frutos são vindos de pessoas que conhecem as
Escrituras e que por isso deveriam proceder totalmente
ao contrário.
Contudo, em detrimento deste comportamento que, sabemos,
não atinge os teólogos comprometidos com a Palavra de
Deus, existem ainda outras objeções alicerçadas no
desconhecimento bíblico. Logicamente, é muito mais
confortável escolher os mitos e as lendas do que
cultivar uma fé racional, pois esta vai exigir uma
atitude trabalhosa em busca do conhecimento, enquanto
que aquelas conservam os fiéis na inércia, fazendo-os
concordar, sem qualquer exercício mental, com tudo o que
ouvem. Como disse o grande teólogo Agostinho: “Deus não
espera que submetamos nossa fé sem o uso da razão, mas
os próprios limites de nossa razão fazem da fé uma
necessidade”. Eis aqui o matrimônio entre a fé e a
razão!
Outro fator a ser considerado é que o estudo teológico é
marginalizado porque ele incomoda, é inconveniente. É
como se fosse uma pedra no sapato dos manipuladores da
Bíblia. Quanto menos conhecimento as pessoas possuírem,
mais facilmente serão controladas. É um comportamento
assumido pelas seitas, nas quais o líder se encarrega de
pensar pelos adeptos e implanta um método sutil de
controle total.
Enquanto a teologia se opor aos modismos e ventos de
doutrinas que não coadunam com a Palavras de Deus e que
levam muitos crentes à fantasias místicas e subjetivas
que beiram à heresias, ela continuará sendo
menosprezada.
A letra mata?
Retomando a questão, mas respeitando seu contexto
bíblico, alertamos que a letra a que Paulo se referiu
não pode ser identificada como sendo o estudo
(conhecimento) teológico. Até porque o apóstolo era um
dos doutores da igreja (At 13.1) e jamais poderia pensar
assim. Acreditamos que são dispensáveis aqui quaisquer
comentários sobre a erudição e a aplicação de Paulo aos
estudos. Isso é uma prova cabal dos benefícios da
educação teológica!
Acerca de Coríntios 2.6, Paulo estava falando sobre a
superioridade da nova aliança sobre a antiga. A morte
causada pela letra realmente é espiritual, porém, é bom
salientar que se trata de uma alusão ao código escrito
da lei mosaica. A lei mata porque demanda obediência
irrestrita, mas não proporciona poder para isso. É
representada pelas tábuas de pedra (3.3). Por outro
lado, o espírito vivifica porque escreve a lei de Deus
em nossos corações, trazendo-nos a vida em medida muito
maior do que realizava sob a antiga aliança. É
representado pelas tábuas da carne (3.3). Portanto, como
podemos ver, o texto comentado não fundamenta, em
qualquer instância, a rejeição aos estudos teológicos.
Por que teologia?
Os teólogos leigos, ainda que inconscientemente, se
beneficiam da educação teológica. Criticam o estudo
teológico, mas lançam mão dele. Todo o legado
doutrinário que usufruímos hoje foi preservado por causa
do zelo impetrado pelos teólogos que formalizaram a fé
por meio de credos, confissões e outras obras. As
doutrinas cristãs sobreviveram ao tempo porque o
Espírito Santo se encarregou de inspirar e levantar
teólogos comprometidos com a fé! O estudo da teologia é
um instrumento indispensável para o saudável
desenvolvimento da Igreja. Todos nós precisamos da
teologia!
Os teólogos leigos deveriam reconhecer o auxílio que
recebem dos teólogos acadêmicos e as duas classes
representadas, de mãos dadas, deveriam seguir o conselho
de Pedro, um teólogo que não possuía a erudição de
Paulo, mas que conseguiu equacionar a questão ordenando
o crescimento na graça e no conhecimento,
concomitantemente (2Pe 3.18).
Dessa forma, o evangelho sairá ganhando e cada membro da
igreja estará no seu posto, lapidando o aperfeiçoamento
dos santos, para a edificação do corpo de Cristo,
segundo o ministério que lhe for confiado por Deus (Ef
4.11,12).
Sobretudo, e finalmente, nosso desejo e oração é para
que consigamos aplicar a teologia à nossa vida. Se
fracassarmos neste intento, a teologia não será mais que
mera futilidade.
Que o Senhor nos guie ao genuíno conhecimento de suas
revelações, pelo seu amor e para a sua glória!
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